28 de fev. de 2005

Sobre Nur na escuridão, de Salim Miguel

Surpreendeu-me o romance Nur na escuridão, de Salim Miguel. Tratava-se de um autor que já ouvira falar, curioso que sou, peguei o livro para ler... É um romance autobiográfico que narra a vinda da família libanesa, inicialmente, para o Rio de Janeiro e depois para Florianópolis. No texto predomina o discurso indireto livre com frases entrecortadas e curtas, utilizando bastante a vírgula ao invés do ponto, o que torna o texto ágil, demonstrando o trabalho consciente de quem labora com a escrita. Não há nada solto ou estanque no romance. Uma prosa maravilhosa para degustar, cenas belíssimas e bem narradas. Gostaria de encerrar com um parágrafo, do capítulo final, que vai narrar a morte do pai, mas que representa, na verdade, todas as mortes que nos cercam. Minha desculpa também para consolar meu amigo Henrique, que perdeu o pai recentemente. Essa é para vc, meu amigo, e para todos aqueles que perderam alguém especial:
"Chegou a hora. Protelação impossível. Necessário encarar o tema. Não há como elidi-lo. E a mesma idéia, obsedante, volta com força. Não são os mortos que morrem. Somos nós, os vivos, que para eles morremos. Deixamos de ser. Os mortos continuam vivendo na nossa lembrança, no nosso sofrimento. Vivendo e presentes. Mais: uma parcela nossa se vai com eles. Melhor: uma parcela deles se incorpora à nossa vida."
Salim Miguel, Nur na escuridão, pág. 238, Topbooks, 2004.

26 de fev. de 2005

A biblioteca de Miguel Sanchez Neto

Que tal um livro que trata do relacionamento com a leitura e os livros? Herdando uma biblioteca, de Miguel Sanchez Neto, da Record, é maravilhoso no que tange ao assunto. Curioso é que eu li uma resenha, se não me engano no Jornal do Brasil, e não me empolguei. A partir de crônicas publicadas em jornais, agora reunidas, o autor, que é romancista, poeta e crítico literário, narra seu encontro com a literatura, com o livro impresso nas mãos. O sonho de construir uma biblioteca, o relacionamento com a leitura, com os autores que vão segui-lo para sempre, com o objeto livro: uma relação de carinho. Em um dos capítulos, o autor narra os melhores locais que ele descobriu para ler. Dei-me conta de que, para mim, o melhor local são entre quatro paredes, seja no quarto de minha casa, na sala... Na verdade, em locais fechados, como um ônibus, por exemplo, onde tenho o costume de ler. Suas reflexões e narração sobre o ato de amor ao livro reflete em todos nós, leitores contumazes. Em minha opinião, esse livro é uma versão nacional do bem sucedido Como um romance, de Daniel Pennac, da Rocco, que narra as aventuras com os livros e a leitura. Neste livro recordo-me de uma frase genial, mais ou menos com essas palavras: O tempo para ler é como o tempo para amar: sempre um tempo roubado. Não vou explicar o título do livro de Sanchez, pois o capítulo que cuida do assunto é tocante. Posso apenas recomendar o livro com a certeza de uma boa leitura.
Para terminar... Quem me emprestou o livro foi meu amigo Henrique, grande leitor que tem acesso aos livros novos que estão saindo no mercado agora. Com meu amigo realizei um sonho: leio os clássicos, pegando na biblioteca, comprando em sebos, e leio os autores novos, pegando emprestado com ele.

18 de fev. de 2005

Os sistemas d`O Arco-íris da Gravidade, romance de Thomas Pynchon

Terminei de ler o livro O Arco-Íris da Gravidade, de Thomas Pynchon, da Companhia das Letras, tradução de Paulo Henriques Britto. Um calhamaço de mais de setecentas páginas. Já fora avisado de que se trataria de uma leitura difícil. Mas eu sou persistente. Sempre vejo tais livros como montanhas que precisamos escalar de vez em quando. Nesse, há um fiapo de história: final da Segunda Guerra Mundial e início do Pós-Guerra, Slothrop, combatente americano em Londres, desperta o interesse de uma agência militar porque toda vez que faz sexo uma bomba V2 cai por perto. há diversas personagens e o cenário é a Europa devastada. Situações diversas vão se sucedendo, alternadamente, quase num ritmo alucinatório. Estão lá teorias da conspiração, discursos sobre a tecnologia, grandes corporações, sexo, drogas... As personagens são, em sua maioria, caricaturais. O que está em jogo no romance é o advento do discurso tecnológico incorporado à guerra pelas grandes corporações, e o homem frente a esse novo mundo do Pós-Guerra. É a elaboração de sistemas de controle e informação pelas grandes empresas, tudo num tom bastante irônico, reflexivo, cruel... As personagens são rasas em virtude das redes de sistemas que são construídas, que as descaracterizam. O ponto alto é o discurso técnico-científico a favor da guerra, do controle do poder pelas grandes empresas. Penso ser o prenúncio do que vivemos hoje (o livro é de 1973) com o controle da informação e do poder pelas multinacionais. Livro difícil, porém interessante. Para dar um gostinho a mais, o final é a narração de uma bomba experimental (se quiserem leiam o livro!) em queda livre e o silêncio de sua explosão. Não se preocupem.. contar o finalzinho do livro não vai estragar a leitura (rs).

16 de fev. de 2005

Trabalho de leitura em sala de aula - parte VI

9. “A prática da leitura é apenas uma das práticas culturais de nossa sociedade”.
Nunca mais esqueci essa sentença proferida por Marisa Lajolo, na I Conferência de História da Leitura e do Livro no Brasil, em outubro de 98, Unicamp. Essa sentença faz perceber que por mais louvado que seja o trabalho com a leitura, por mais rico que seja o debate e a produção de livros e teses acadêmicas sobre esse assunto, ainda assim, vai tratar-se de uma das nossas práticas culturais. Não é desmerecimento, é constatação. Uma constatação enobrecedora – como todo o processo de educação – para quem toma para si a tarefa de partilhar a prática da leitura com outros.

12 de fev. de 2005

Trabalho de leitura em sala de aula - parte V

7. Respeitar o tempo próprio de cada leitor;
É preciso respeitar o tempo de descoberta do leitor no contato com o texto, pois é neste tempo – e nesta descoberta – que o leitor está fazendo da sua leitura uma construção de sentidos. A tarefa do professor, em seguida, é confrontar esta descoberta com a dos outros alunos/leitores.

8. Professor como tecelão do grupo;
Gosto da idéia do texto como tecido, como certa vez Barthes escreveu. Por isso, talvez seja mais fácil explicar o tecido, e não o texto. O tecido constitui-se de um conjunto de fios agrupados em determinados sentidos. É trabalho do tecelão juntar os fios para formar o pano. Pois bem, a leitura é construção de sentidos porque é o reagrupamento do texto/tecido. Somado ao texto estão agora expectativas e questionamentos do grupo de leitores, um novo pano, portanto. Cabe ao professor dar um propósito ao tecer este novo tecido.

8 de fev. de 2005

Trabalho de leitura em sala de aula - parte IV

5. Não subestimar o aluno;
Tenho uma experiência curiosa para este assunto. Numa atividade de leitura que exerci com turmas da 3a idade, resolvi trabalhar a letra da música “O teu cabelo não nega”, de Lamartine Babo. Qual era minha intenção? O texto seria um pretexto para discutir tempos idos, reavivando-os para contrapor com o momento atual, de maneira bem simples, numa discussão nada complicada. Quando comecei a perguntar sobre as marchinhas e o carnaval daquela época, Dona Juraci, uma das alunas, interrompeu-me e perguntou se Lamartine não estaria sendo racista, comparando a cor da mulata com uma doença (“Mas como a cor não pega/Mulata/Mulata quero o teu amor”). Não esperava por essa pergunta. Na verdade, achei que não sairíamos de uma conversa nem tanto profícua. Foi um erro ter subestimado aquele grupo de leitores.

6. Valorizar o discurso do leitor;
Valorizar o discurso do leitor significa dar vazão ao que o leitor questiona. Bons professores incentivam o diálogo e o confronto de idéias. Maus professores apegam-se ao monólogo e ao conforto das idéias – estas, geralmente cristalizadas.

2 de fev. de 2005

Trabalho de leitura em sala de aula - parte III

2. Conhecer o texto e o autor a ser trabalhado;
Algo óbvio e nem sempre percebido. Trabalhar com um texto implica, em minha opinião, numa relação de prazer porque uma boa leitura é um ato de prazer. Se quem oferece um texto não tem esta relação, dificilmente passará para o outro a experiência de uma boa leitura. A intimidade resultante de uma boa leitura nunca é dada, ela é partilhada.

3. Criar expectativas de leitura;
É preciso ambientar o grupo para a leitura. Perguntar, conversar sobre algumas questões que estão pontuadas no texto antes da leitura, apresentar o autor... Nada que uma boa conversa não possa resolver.

4. Professor como mediador na relação texto/leitor;
Certa vez escrevi um artigo em que dizia que este era um trabalho de construtor de pontes: aproximar as distâncias entre o texto e o leitor. Quando preparo um texto, procuro marcar pequenos trechos que provoquem o debate, utilizando-os sempre que percebo a ausência das vozes do grupo leitor. Esta ausência, quando extensa, é um péssimo sinal para quem trabalha com a leitura. Significa que as tais distâncias podem ainda estar intactas, e, portanto, não há para o professor mediação alguma.